domingo, 25 de outubro de 2015

Minha visão sobre a Teoria do Direito Penal do Inimigo

A Teoria do Direito Penal do Inimigo (Feindstrafrecht), é perigosa e até danosa ao misturar uma definição objetiva de inimigo da sociedade (aquele que, ao transformar em seu meio de vida agredir injustamente a sociedade através da prática de crimes) com uma praxis de atos extremistas em face destes.

O criminoso contumaz é sim nosso inimigo. Um traficante armado de seu fuzil mata tanto quanto o inimigo entricheirado na batalha campal. E deve ser combatido com os meios eficazes, o que, neste caso, é o enfrentamento armado nas ruas.

Acontece que o combate armado é absolutamente ineficaz se não tivermos um Direito Penal e um Direito Processual Penal modernos, eficientes e perfeitamente moldados para a realidade atual dos conflitos.

Não se trata de Estado de Exceção, bem pelo contrário, é necessário que os membros do Poder Legislativo estejam sempre atentos à realidade cotidiana, de forma a jamais ser necessário ocorrer algo como o maior tribunal de exceção da história, que foi Nuremberg.

Assim, é necessário que o Direito esteja sim protegendo e garantindo o cidadão, até mesmo aquele que decidiu ser um criminoso profissional, onde as garantias individuais não podem JAMAIS suplantar ou de qualquer forma AGREDIR a sociedade.

O Direito de o cidadão produtivo gozar de uma praia ou restaurante em tranquilidade e segurança deve SEMPRE ser garantido acima do direito de liberdade de quem vive parasitariamente. E se for para escolher entre o direito à vida de duas pessoas, que se escolha sempre a proteção da vítima, ao contrário do que ocorre atualmente.

Ao contrário do que imaginam alguns, um Estado forte não é aquele dominado por um ditador - este é o mais fraco dos Estados. A verdadeira força de um Estado está na solidez de suas instituições democráticas, e a base de toda e qualquer instituição democrática é o povo.

Assim, portanto, é necessário sim que primeiro reconheçamos que o criminoso contumaz, habitual, profissional, é sim inimigo do povo - não um animal diferente e inumano, mas um humano inimigo.

Em segundo lugar, é necessário que o inimigo SAIBA que o identificamos como tal, e que, como tal o trataremos - no combate armado, e para aqueles que se renderem, no tratamento judicial correto e adequado.

Por último, é necessário que abandonemos imediatamente a prática do politicamente correto. Minimizar ou despersonalizar os atos de um criminoso contumaz, transformando o ato daquele que engenhosamente bolou e realizou um ato contra a sociedade em algo a ser explicado sob a luz de teorias sociais, isto apenas e tão somente criará uma falsa justificativa para que o agente incorra novamente em seus atos delituosos, mas agora com algo que retire o possível incômodo de sua consciência - e nisso estou excluindo os psicopatas. Porque as tais teorias fazem apenas isso, justificam a prática criminosa.

Aprendemos no direito que existem crimes culposos e dolosos. Os primeiros são aqueles crimes praticados por imperícia, descuido, ou até despreparo. Os últimos, que são o objeto destes meus pensamentos, são impregnados da VONTADE do agente. O camarada planejou, se organizou, foi e assaltou um carro forte.

Nos crimes culposos não há como termos o mesmo grau de reprovabilidade, pois ainda que o resultado seja o mesmo, o agente não pretendia o resultado. Já nos crimes dolosos, em algum momento o agente decidiu que o bem tutelado era mais importante para ele, do que o trabalho, o esforço ou até mesmo a vida de outrem.

Esta decisão pessoal é que faz toda diferença, e, me desculpem aqueles que ainda discutem questões de menoridade penal, mas até o meu cachorro sabe fundamentalmente o que é certo ou errado, e até ele decide fazer algo se o sabe errado. Nós, humanos, incorporamos esta capacidade muito cedo, onde até mesmo os psicopatas decidem não praticar este ou aquele crime, ainda que por questões de mera conveniência social. Esta decisão de lesar conscientemente outrem afasta definitivamente a possibilidade de que o criminoso possa ser considerado cidadão – ele é o inimigo.

Neste ponto, afirmo que só podemos tratar o inimigo com a dignidade que não nos afaste de nossa condição humana. A pena capital, bem como as penas perpétuas, não são desumanas – principalmente se levarmos em consideração o fato de que os criminosos praticam atos que podem acarretar a morte de suas vítimas, ou trazer consequências eternas para as vítimas (lembre-se, existem crimes onde as consequências eternas ocorrem para os familiares das vítimas).

Ontem o médico Jorge de Paula Guimarães foi assassinado com um tiro na cabeça, em um latrocínio. Nós, a sociedade, dispendemos muitos anos, muito dinheiro, muito esforço para termos esse médico. O assassinato de um profissional gabaritado, além de ter altíssimo custo social, é de difícil reparação – podemos até vir a ter outro médico com a sua qualificação, mas perderemos todos os trabalhos e avanços que este profissional nos traria. Isso sem dizer a respeito da dor de sua esposa e três filhos, as dificuldades financeiras que advirão, o trauma irreversível de ter um pai assassinato pelo simples fato de insistir em morar no Brasil.

Analisando friamente, a prisão dos assassinos (eram no mínimo dois, um motorista e outro que efetuou os disparos) ainda nos geram custos: Todo o efetivo envolvido no atendimento da ocorrência, investigação, perícias; o trabalho acusatório, o processo judicial, a defesa dos autores (sim, pagamos até os advogados dos bandidos), e caso sejam presos, assumimos todas as despesas da vida de nosso algoz, que não precisa trabalhar, estudar, não precisa fazer ABSOLUTAMENTE NADA. Perdemos se eles ficam soltos, porque voltarão a matar e roubar, e perdemos se eles forem presos, porque pagaremos valores imensos, verdadeiras fortunas por isso.

O crime tem custos altíssimos para a sociedade.

É sedutora a ideia de entrarmos em um Estado de Exceção, para combatermos os criminosos livres de falsos pudores ou qualquer freio moral – a bala que mata o bandido é um ganho social altíssimo. Mas se agirmos assim, estaremos abandonando a nossa própria humanidade.

O bandido que levanta uma arma contra um policial ou contra um cidadão – quanto a este, não há dúvidas. Tem que ser derrubado ali, na hora. Ninguém, seja civil ou seja agente público, tem a menor obrigação de arriscar a sua vida ou a de outrem, para tentar primeiro desarmar um bandido, para depois efetuar sua prisão. Prisão é um ato de força do lado de quem a efetua, mas é um ato de rendição daquele que é preso. Sem a rendição, não há de se falar em prisão.

Mas, havendo a prisão, neste momento precisamos diferenciar a natureza do crime e do criminoso. Todo e qualquer ser humano pode cometer um crime, até mesmo um crime doloso, sem se tornar em um criminoso. Esta é a própria essência de um Tribunal do Juri. Mas existem aqueles que resolvem SER criminosos, é por este motivo que nunca dizemos que fulano “está” ladrão, mas que É ladrão. A decisão de agir altera o próprio ser.

Então o sistema penal não pode deixar em aberto mecanismos que liberam automaticamente criminosos profissionais, que liberam saídas durante o cumprimento de penas, nem muito menos que imponham “progressões” de pena: A cada segundo em que o criminoso está recluso, a sociedade está um pouco mais segura. E que ninguém se engane achando que alguém que viveu de roubos e assaltos durante anos, ao sair da prisão irá iniciar uma carreira de trabalho duro e honesto pelo simples fato de ter sido preso – a prisão, apesar de ter um viés punitivo, é vantajosa para a sociedade simplesmente pelo fato de nos livrar de sermos vítimas de determinado elemento, ainda que por apenas um determinado espaço de tempo.

Eu li “Papillon” de Henri Charrière, duas ou três vezes, e em nenhuma das vezes achei algum absurdo na forma de cumprimento da pena relatada no livro – o autor conhecia as consequências dos seus atos, e escolheu livremente, preferiu se expor à possibilidade de pena, ao ter de trabalhar honestamente. Eu não tenho pena de bandido cumprindo pena – tenho pena do cidadão que sai de casa de madrugada e volta tarde da noite, trabalhando e estudando, e tendo que disponibilizar uma parte dos seus ganhos para o sustento dos bandidos nas ruas, e outra para o sustento dos bandidos nas prisões.

Um sistema penal que fosse minimamente justo, imporia penas de reclusão com TOTAL AFASTAMENTO do elemento da sociedade. Gosta de transar com a namorada ou esposa? Que não cometa crimes, porque se for para a cadeia, não existirá “visita íntima”. Agora estão abrindo visitas íntimas até para menores “infratores”.

E na prisão o camarada vai precisar de alimento, vestimentas, cobertas, colchões, vigilância... O camarada deve TRABALHAR dentro da prisão para cobrir as suas despesas, e ressarcir os danos do seu crime.

É absolutamente normal, está previsto em lei o ressarcimento por danos em face a crime cometido – a própria sentença penal condenatória é título executivo extra-judicial. Pois bem, o que eu MENOS VEJO neste mundo, é vagabundo tendo que pagar pensão para a família de suas vítimas. Não importa que a família da vítima seja rica e a família do criminoso seja miserável1, se cometeu o crime, tem que indenizar.

O que acontece hoje, na prática, é insano. O criminoso encontra nas penitenciárias um status que é semelhante, ou muitas vezes MELHOR do que o que tem fora da prisão. Recebe visita íntima de qualquer pessoa cadastrada para isso, inclusive prostitutas. Não é obrigado a trabalhar, mas não sei dizer se para o vagabundo o ato de trabalhar seria qualificado como “trabalho forçado” ou pena cruel. Bem pelo contrário, vagabundo que trabalha na prisão recebe por isso, e ainda tem tempo de pena descontado, como se ele não tivesse obrigação, como todos nós, de trabalhar pelo próprio sustento. Na prática, não tem.

Bandido bom é bandido morto”? Não. Não vejo hipótese alguma em que um bandido se transforme em “bom”. Mas o bandido morto nos custa menos, e nunca mais nos usará como vítimas, nem nas ruas, nem nas prisões que temos que pagar. Mas não vou entrar na discussão sobre a pena de morte, porque aí já seria outro assunto.

Em fim, acato a tese de que o criminoso é nosso inimigo. O que não aceito é a despersonalização ou desumanização do inimigo, nem jamais me conformarei com a forma benéfica e altamente instigadora do crime como são hoje tratados os criminosos contumazes.


1Eu preferiria morrer de fome, do que viver um segundo sequer com dinheiro advindo da prática de crimes.   

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Os crimes de porte ilegal de arma de fogo – breve estudo dos Tipos Penais

No Brasil, desde Dezembro de 2003, está em vigência a Lei 10.826/03, apelidada de “Estatuto do Desarmamento”. Este “nome” se devia principalmente ao texto do art. 35, que foi invalidado pelo Referendo Popular de 2005, mas que, se estivesse vigente, marcaria a nação pelo fim da produção e comercialização de armas no Brasil – situação que atingiria toda a população civil, exceto os CACs (Colecionadores, atiradores e caçadores registrados perante o Exército Brasileiro).

O que se pretende estudar neste momento, é especificamente os crimes de porte ilegal de armas de fogo, consubstanciados nos artigos 14 e 16 da referida lei.

Primeiramente, é importante anotar que existe no caput do art. 6o uma proibição genérica ao porte de armas, ou seja, desde dezembro de 2013 o porte de armas é proibido em todo o Brasil, EXCETO para os casos previstos em lei federal, e para as pessoas listadas nos diversos incisos do artigo sexto.

Isto é relevante, porque temos, então, pessoas a quem o porte de armas é proibido (todos), e pessoas a quem o porte de armas NÃO É PROIBIDO (aqueles com porte de armas previsto em lei federal, e os listados nos incisos do art. 6o ). Isto irá se refletir diretamente na análise dos crimes aqui estudados.

Os dois artigos que tratam os crimes de Porte Ilegal de Arma de Fogo se distinguem fundamentalmente pelo art. 14 tratar de armas de calibre PERMITIDO, e o art. 16 tratar de armas de calibre RESTRITO. Esta definição não consta da lei, mas sim do R-105, que é o decreto 3.665/2000.

O que é permitido ou restrito?


Então a primeira questão necessária para se compreender se o fato material se amolda a um dos dois tipos, é observar o OBJETO, e obter a partir da leitura do Dec. 3.665/2000 se se trata ou não de PCE1, e sendo, se é qualificado como restrito ou permitido.

Atentem ao fato de poderem existir portarias, instruções normativas, etc., qualificando este ou aquele objeto como permitido ou restrito, mas a lei é imperativa, onde no art. 23 se restringe a classificação ao R-105 (ato do Poder Legislativo realizado por provocação do Exército Brasileiro). Nada fora do R-105 pode classificar PCEs, muito menos para fins penais.

Porte ilegal de arma de fogo de uso permitido


O primeiro objeto de nosso estudo, é o art. 14:

Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. (julgado inconstitucional pelo STF)

Os verbos nos remetem a condutas, e por serem bastante simples, não vou me alongar, bastando a comentar alguns deles. Para não me repetir, já adianto que as definições se amoldam tanto no art. 14 quanto no 16, onde no art. 14 os crimes dependem de os itens serem classificados como PERMITIDOS, e no art. 16 os itens devem ser classificados como proibidos ou restritos.

Portar – é trazer consigo a arma, fora de seu domicílio, conforme disposto no art. 5o e 12o. Não existe o tipo penal “portar municiado”, ou “portar desmuniciado”, trata-se de conduta de perigo abstrato, inclusive porque uma arma de fogo, mesmo descarregada, pode se prestar a render uma vítima ou um criminoso2, ou seja, existe sim potencial ofensivo em uma arma desmuniciada. Também não existe nenhuma diferença, em nosso ordenamento jurídico, se a arma se encontra no coldre do autor dos fatos, em mãos, ou desmontada no porta malas do seu veículo – o fato material é a arma estar FORA DO DOMICÍLIO. Lembrando que o porte apenas de munição incide no tipo, ou seja: Configura-se o crime com a arma desmuniciada, municiada, ou apenas com a munição. Da mesma forma, não existe autorização para portar arma desmuniciada – ou a pessoa está autorizada para estar com a arma, ou não está3.

Deter, manter sob sua guarda, ter em depósito – novamente, o verbo nos remete ao conceito de “conservar em seu poder4”, e aplica-se integralmente o que se diz a respeito de Portar. Se a arma estiver no domicílio do autor dos fatos, o crime não é o do art. 14, mas sim o do art. 12, mesmo que a arma seja ilegal, mas desde que não se amolde ao tipo do art. 16.

Adquirir, receber, fornecer – estes são verbos que, na maioria das vezes, são de difícil aplicação. Se o policial presenciar a aquisição de uma arma ilícita, é muito provável de que se tratará de hipótese de flagrante preparado, caso contrário já teria sido dada ordem de prisão a quem vendeu a arma – que era ilegal. Se, no entanto, o flagrante configurar o crime de aquisição, haverá o crime de fornecer arma de fogo (ou munição) para quem forneceu o produto, cada um com um agente distinto. Estes crimes só se configuram caso se demonstre que não se trata de atividade comercial, mesmo que irregular, pois o comercial ilegal é tratado no art. 17o .

Ceder ou emprestar – comete este crime quem, apesar de ter a posse e ou o porte legais, permite que terceiro não autorizado entre na posse, ainda que precária, da arma ou munição. Difere-se da situação de quem fornece, pois aqui não existe a onerosidade nem permanência. Importante salientar que ceder ou emprestar arma a criança ou adolescente é crime mais grave, previsto no art. 16o Inc. V.

Remeter – este é o crime mais comum, e comete-se este crime principalmente violando-se o disposto no art. 165 do R-105. Vou dar um exemplo: Qualquer cidadão maior de 18 anos de idade pode adquirir uma luneta com aumento até 6X e objetiva até 36mm. Ótimo. As pessoas acham que por este item não ter o mesmo controle de uma arma de fogo, que não há controle algum. Errado. Trata-se de uma PCE categoria de controle I, não há isenção de GT para este item (art. 174 do R-105), e como tal, seu transporte depende da competente autorização. Assim, o simples fato de se enviar uma luneta das mais comuns desacompanhada da autorização de transporte, configura o crime do art. 14, porque o tipo compreende ACESSÓRIOS, não apenas arma de fogo e munição. Se o item enviado fosse uma carabina a arma comprimido, por não se tratar de arma de fogo nem de acessório, o crime não estaria caracterizado.

Transportar – o verbo transportar, no âmbito da legislação brasileira de armas de fogo, e analisando-se historicamente o R-105, diz respeito à condução de material de terceiros. O cidadão vai até o aeroporto com sua arma, ele está portando a arma. Ele entrega sua arma na companhia aérea, que irá conduzi-la até o destino – a empresa está transportando a arma. Quando o cidadão recebe novamente sua arma no destino, está novamente portando-a. Não importa que em todos os momentos a arma estivesse desmontada e dentro de uma embalagem, é esta a diferença entre porte e transporte. Então só comete o crime de transportar aquele que conduz, profissionalmente, arma de fogo, acessório ou munição de terceiro, desde que este transporte se faça ilegalmente – a ilegalidade será analisada mais a frente, neste artigo, e necessita que se somem a ausência de autorização mais a violação da lei ou regulamento.

Porte e transporte são atividades distintas, tratadas de forma diferenciada no R-105, e seria um erro crasso se confundir as duas atividades. Infelizmente existem pessoas que, sem se dar ao trabalho de estudar suficientemente o assunto, confundem os dois institutos, com graves consequências jurídicas.


Empregar – dia 02 de outubro de 2015, ladrões atiraram contra dois policiais, um cidadão comum se aproximou para ajudar um dos policiais caídos, tomou a arma do policial e continuou o fogo contra os bandidos5. Pela leitura fria do tipo penal, o cidadão responderia pelo fato de empregar arma de fogo (no caso, a arma do policial provavelmente era de calibre restrito, e isto nos remeteria ao art. 16). Não vou mencionar o crime de disparo em área urbana, porque não é o objetivo deste trabalho. Pela atual mecânica de nosso direito penal, as excludentes de ilicitude salvariam POSTERIORMENTE o cidadão, inclusive porque qualquer pessoa sob situação de risco própria ou de terceiro, tem o direito de se utilizar dos meios ao seu alcance para sua defesa – o que, obviamente, inclui uma arma de fogo. Mas o termo empregar diz respeito justamente a esta situação – a pessoa não possuía uma arma de fogo e sua munição, nem muito menos a portava. Teve acesso ao objeto exclusivamente no momento dos fatos, e a utilizou. Se a tivesse utilizado para a prática de outro crime, muito provavelmente o fato de empregar a arma de fogo seria o crime meio, onde em não se tratando de agravante, provavelmente ocorreria uma hipótese de consunção. Este é o tipo penal pensado exclusivamente sob a ótica do desarmamento da população, e nenhum meliante jamais perderia um segundo sequer para pensar nas consequências do crime aqui referido, pois, reitero, este crime seria absorvido pelo crime-fim. Este é um tipo penal que visa exclusivamente criminalizar o acesso ao meio de defesa.

Ocultar – ocultar uma arma de fogo é um crime que geralmente é acessório de outro. Assim, por exemplo, um bandido em fuga atira sua arma em um matagal, ou a esconde em um buraco. Para se caracterizar este crime, é necessário que a ocultação seja ilícita. O cidadão que tem uma arma registrada (SINARM) ou apostilada (no SIGMA não se registram armas, apenas se apostilam em mapas) e decide ocultá-la para fins de segurança do próprio objeto, prevenindo-se de eventual furto ou roubo, não comete tal crime, aliás, tratar-se-ia de crime impossível, de vez que existe averbação pública do endereço da guarda da arma, acessório ou munição. Se o mesmo ato for praticado com um objeto ilícito, por exemplo, uma arma não apostilada, ou uma munição que não se adéque a nenhuma arma do agente, ao ser localizado o objeto, estará configurado o crime. Deixar de entregar arma para perícia após seu uso pode, hipoteticamente, caracterizar este crime, mas já existe Projeto de Lei6 em andamento para corrigir este absurdo, pois é justamente após necessitar utilizar sua arma que a pessoa fica mais vulnerável – comparsas do criminoso abatido, ou parentes vão estar no calor das emoções, e irão tentar vingança, mesmo que a primeira ação tenha sido justa. Se a pessoa se negar a entregar a arma para perícia, estará cometendo o crime de ocultação de arma de fogo, crime este que, neste caso, será absorvido pelo princípio da consunção pelo crime principal, mesmo em caso de absolvição do agente por alguma excludente de ilicitude.

Posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito


O caput do artigo 16 se assemelha muito ao do artigo 14, mas compreende também o verbo POSSUIR. Isto significa que, ao contrário do que acontece com as armas de calibre permitido, neste caso o simples fato de se ter dentro de seu domicílio uma arma de fogo, acessório ou munição de calibre proibido ou restrito não aponta para o crime do artigo 12, mas sim para este do artigo 16, cuja pena é mais grave. Os verbos restantes do caput foram analisados no art. 14o.

Além dos crimes do caput, existem também os verbos dos incisos I a VI, conforme segue:

I - suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato;

Aqui não se trata apenas de arma de calibre restrito ou proibido, mas de qualquer ARMA DE FOGO OU ARTEFATO, não ficando claro do que se trataria a palavra “artefato”. Imagina-se se tratar de objeto equivalente a arma de fogo, mas este é, sem dúvidas, um texto de péssima qualidade.

II - modificar as características de arma de fogo, de forma a torná-la equivalente a arma de fogo de uso proibido ou restrito ou para fins de dificultar ou de qualquer modo induzir a erro autoridade policial, perito ou juiz

Aqui se trata de modificações específicas, de forma a que uma arma de calibre permitido adquira características de outra semelhante, mas de calibre restrito ou proibido. Um exemplo bastante comum, é uma pequena usinagem realizada em armas no calibre .38 SPL, de forma a receberem cartuchos de munição .357 Magnum. Em algumas armas isto é até possível do ponto de vista técnico, ou seja, a arma consegue suportar as pressões da carga maior, mas na quase totalidade das vezes tais modificações colocam até o operador da arma em risco. É necessário que tal modificação seja de calibre permitido para restrito ou proibido, ou que a modificação seja totalmente oculta, de forma a tentar dificultar ou induzir as autoridades relacionadas a erro. Se a modificação for para outro calibre permitido, ou se for visível, ou seja, se não houver a tentativa de induzimento a erro, o crime não se configura. Um caso de modificação oculta, é seletor de rajadas para armas semiautomáticas – mas isso seria facilmente perceptível para o perito.

III - possuir, detiver, fabricar ou empregar artefato explosivo ou incendiário, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar

Qualquer um dos verbos deste inciso, que são claros e não dão margem a interpretação, incidem na mesma pena do caput.

IV – portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado;

Este inciso se refere às armas com numeração ou sinais de identificação raspados. Se o agente praticar algum dos verbos deste inciso, mesmo com uma arma de calibre permitido, novamente, incidirá nas penas do caput.

V – vender, entregar ou fornecer, ainda que gratuitamente, arma de fogo, acessório, munição ou explosivo a criança ou adolescente

Neste inciso incide qualquer um que permitir que criança ou adolescente tenha acesso ou utilize armas de fogo, acessório, munição ou explosivo. Como o tipo é por demais aberto, estaria incidindo neste crime quem praticasse um dos verbos mesmo com uma simples luneta de uso permitido que estivesse em uma arma de pressão, ou com uma bombinha de festas juninas? Qual a extensão deste tipo penal? De qualquer forma, hoje já está suficientemente claro que adolescentes podem praticar o Tiro Desportivo, mediante CR do Exército Brasileiro, com alvará judicial.

VI - produzir, recarregar ou reciclar, sem autorização legal, ou adulterar, de qualquer forma, munição ou explosivo

No Brasil munições, pólvoras e espoletas só podem ser produzidas por empresas devidamente autorizadas pelo Exército Brasileiro, que recebem um documento denominado Título de Registro – TR. Fora isso, é necessário apostilar-se a atividade de recarga de munições, tanto para CACs como para entidades autorizadas para recarregar munições, sendo que, em qualquer caso, às pessoas autorizadas é terminantemente VEDADO o comércio de munição recarregada.

Elementares condicionantes do tipo penal


Tanto o art. 14 quanto o art. 16 tem condicionantes que precisam ser cumpridas, antes que se configure o Tipo Penal. Na ausência de uma ou mais condicionantes, não existe o crime.

São duas as condicionantes que devem estar presentes simultaneamente.

I – o agente deve estar SEM AUTORIZAÇÃO e;
II – O agente de estar violando a lei (Lei federal, exclusivamente, por se tratar de matéria penal) ou o seu regulamento (O Estatuto do Desarmamento é regulamentado pelo Decreto 5.123/04, e, por força no disposto no art. 23o da própria lei, também é regulamentado pelo Decreto 3.665/2000).

A violação destas duas condicionantes devem ocorrer simultaneamente, ou seja, a pessoa deve estar sem autorização MAIS estar descumprindo a lei ou o regulamento.

Sim, percebam que existe uma conjunção aditiva “e” entre a primeira e a segunda condicionante. Deste modo a pessoa que estiver com autorização mas descumprindo a lei ou o regulamento não comete o crime, da mesma forma que aquele que estiver sem autorização mas cumprindo a lei e o regulamento. Isto é importante, e tem uma aplicação prática no cotidiano, como veremos a seguir.

Ausência de autorização


A primeira, é que tais crimes só se configuram na ausência de AUTORIZAÇÃO.

Em Direito Administrativo, autorização “é um ato administrativo discricionário, unilateral e precário, pelo qual o Poder Público torna possível ao pretendente a realização de certa atividade, serviço ou utilização de determinados bens particulares ou públicos, de seu exclusivo ou predominante interesse, que a lei condiciona à aquiescência prévia da Administração”7.

A autorização é concedida em razão de um ato ou fato que se considere a princípio como proibido, enquanto a licença, por exemplo, é concedida em razão de um ato ou fato que se considere permitido, mas o poder público exerça controle.

Vimos que, de acordo com a primeira parte do caput do art. 6o, genericamente TODOS são proibidos de portar arma no Brasil. Mas sabemos que pessoas portam arma no Brasil, sem para tanto depender de autorização. Isto se deve à segunda parte do caput, onde se excepcionam aqueles já autorizados em lei especial, e aqueles descritos nos diversos incisos do art. 6o.

Então, aqui no Brasil só quem precisa de AUTORIZAÇÃO de porte de armas, é o cidadão comum, e isto é suprido exclusivamente mediante o Porte de Armas do art. 10o, ou seja, mediante o Documento de Porte de Armas expedido exclusivamente pela Polícia Federal. Não há outro caso de autorização de Porte de Armas em nosso ordenamento jurídico.

Um Juiz de Direito tem o seu porte garantido pela LOMAN, então não depende de autorização de porte, ou seja, não irá na Polícia Federal requerer um Documento de Porte de Armas, inclusive porque pode portar armas de calibre restrito, e não há previsão na Lei 10.826/03 para autorização de porte de armas de calibre restrito. Então o magistrado porta sua arma tendo em mãos seu documento funcional, e o documento de sua arma. Apenas isso, mais nada. Um Juiz de Direito, para cometer os crimes dos arts. 14o ou 16o da Lei 10.826/03, deverá estar descumprindo a lei ou o seu regulamento – fora dessa hipótese, não há crime possível.

Coloquei este exemplo apenas para demonstrar, de forma prática, que AUTORIZAÇÃO, ou seja, a primeira condicionante, se aplica exclusivamente ao cidadão comum, aquele que depende de ter Porte de Armas emitido pela Polícia Federal – porque ele é o único proibido pelo caput do art. 6o. Todos os listados nos diversos incisos do art. 6o não tem autorização, justamente porque não são proibidos de portar armas8.

Violação da lei ou do regulamento


Mesmo aqueles dispensados de autorização, devem cumprir a lei ou o regulamento a fim de não estar cometendo os crimes dos artigos 14 e 16.

Novamente temos uma conjunção, mas desta vez, é uma conjunção alternativa.

Vejam que tanto faz se o agente está descumprindo a lei ou o regulamento, mas importa sim que esteja descumprindo um dos dois E esteja sem autorização. Só assim se configura o crime.

Quando o tipo pena se refere a “Lei”, estamos nos referindo especificamente às Leis Federais que regulam a propriedade, a posse e o porte de armas. São a Lei 10.826/03, a LOMAN9, e a LOMP10. Não existe incidência de nenhuma lei no que diz respeito ao crime ilegal de armas de fogo.

Quando o tipo penal se refere a “Regulamento”, isto diz respeito exclusivamente ao Decreto 5.123/0411, e por força do disposto no art. 23o, também o Dec. 3.665/2000, conhecido como “R-10512”.

Caso o agente esteja com a autorização ou esteja cumprindo a lei e o regulamento, ele pode sem problema algum estar violando portaria, instrução normativa, instrução técnico administrativa, ou o que mais a administração direta vier a redigir e publicar, INCLUSIVE porque é inconstitucional se criar deveres e obrigações, senão em virtude de LEI FEDERAL13. O máximo que pode ocorrer é alguma sanção administrativa, que, neste caso, será facilmente revertida pela inconstitucionalidade da norma.

Este é um ponto central: Existem interpretações jurisprudenciais afirmando que alguém pode responder por porte ilegal de arma de fogo, caso esteja violando portaria ou norma, mesmo que inferior a portaria. Isto contraria o Tipo Penal que não tem esta previsão, e viola inclusive o Princípio da Anterioridade da Lei Penal: Não existe crime nem pena sem LEI FEDERAL anterior que a culmine.

Aqui no Brasil, no entanto, os tipos penais dos dois crimes de porte ilegal de arma de fogo só descem na análise até o regulamento da lei, sendo irrelevante penalmente as regras infra-ministeriais e outras, e com isto alcançamos segurança jurídica.

Por que isso é relevante? Vejamos o exemplo de países desenvolvidos: Nos EUA, por exemplo, são criadas “Gun free zones14” pela mera colocação de uma placa “No guns allowed15”. É uma prerrogativa do proprietário de uma casa comercial, por exemplo, permitir ou não a entrada de cidadãos armados, ainda que os mesmos tenham ou não necessitem de autorização estatal para tanto.

Aqui no Brasil um proprietário de uma boate, por exemplo, não teria esta prerrogativa de escolher se o seu cliente pode ou não adentrar armado em seu estabelecimento, pelo fato de já existir regulamentação a este respeito no Dec. 5.123/04, mas principalmente, porque as condições de uso e porte de armas de fogo estão firmemente definidas em lei federal, e o tipo penal se restringe à análise do tripé AUTORIZAÇÃO + CUMPRIMENTO DA LEI ou CUMPRIMENTO DO REGULAMENTO DA LEI.








1Produto Controlado pelo Exército, definição no R-105
2HC 85465/2015, 1a Câmara Criminal do TJ-MS, Rel. Des. Orlando de Almeida Perri, J. 21/07/2015
3Os arts. 31 e 32 do Dec. 5.123/04, contrariando o disposto na lei, legisla criando a obrigatoriedade de atiradores EM ATIVIDADE INTERNACIONAL, caçadores e colecionadores transportarem suas armas desmuniciadas e separadas da munição. Atualmente a ITA 03/2015 do DFPC também legisla criando obrigações, mas isto é vedado pelo art. 5o, Inc. II da Constituição Federal, e não é relevante do ponto de vista penal, porque o tipo penal não abrange portarias, instruções, regras de condomínio, estatuto de clubes, etc.
6PL 3260/2015, de autoria do Dep. Eduardo Bolsonaro - http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=2017116
7MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 35 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, pág 190
8A nossa Constituição Federal incorpora a teoria denominada “Pirâmide de Kelsen”, onde existe uma hierarquia normativa, sendo que normas inferiores servem apenas para dar efetivo cumprimento às normas superiores. Qualquer ato legislativo ou normativo contrário a esta regra, é inconstitucional e não pode ser acatado.

9Lei Complementar 35, de 14 de Março de 1979, art. 33 Inc. V
10Lei 8.625, de 12 de Fevereiro de 1993, art. 42.
11“Regulamenta a Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, que dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas - SINARM e define crimes”
12Regulamento para a Fiscalização de Produtos Controlados
13Constituição Federal, art. 5o, Inc. II.
14Zonas livres de armas, não por coincidência, palcos das maiores tragédias de forma recorrente.

15Em tradução livre, “Proibido entrar armado”.