segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Ética imobilizada

De repente, me vi dentro de uma disputa jurídica, que já se arrasta por quase 5 anos... Afinal, qual é a história dos imobilizadores bovinos no Brasil? Nada melhor do que alguém que viveu os bastidores desta história, desde o início, para contar. Vou começar falando a respeito das pessoas, e depois dos equipamentos em si.

Em 1999 eu já trabalhava aqui em Araraquara há algum tempo, pilotando meu avião, um Cessna 175 modificado para lançamento de pára-quedistas, que eu havia comprado em sociedade com alguns amigos para voar nos finais de semana. Num determinado dia um primo meu trouxe seu cunhado com a irmã em minha casa, porque esta pessoa queria contratar alguém para pilotar seu avião, e dava preferência para alguém fluente na língua do tio Sam, porque ele mesmo só sabia dizer “Oi”, quando chegava, e quando saía. Sim, naquela data o sul-africano Jan “Yani” Harm Kruger, que já estava com minha prima havia alguns meses, só conhecia este único monossílabo em nossa língua pátria. Interessante mesmo é que minha prima não sabia falar nem “hello” em inglês...

Yani se mostrou uma pessoa falante e muito ativa, com pose aristocrática, imponente, muito seguro e si, e se não tivesse chegado na porta de minha casa com um carro velho caindo aos pedaços, eu diria que se tratava do presidente de alguma multinacional.

Começou a me contar a respeito dos aviões que tinha quando morou nos EUA, dois turbo-hélice Merlin III, e um Mitsubishi MU-2B Marquise. Falou de quando tirou o seu brevê, dos aviões que pilotara, e não faltaram detalhes técnicos sobre as aeronaves. Eu, que só voei aviões a pistão desde que tinha 16 anos de idade, tive que ir no google para saber que aviões eram esses.

Mas comecei a trabalhar com ele. Yani chegou em um outro dia, pediu que eu reunisse os meus amigos, pois queria comprar nosso avião. Chegou, em pleno domingo à tarde, com uma sacola com dinheiro, duas vezes o valor que pedimos, uma em dólar, outro em reais. Como era interessante, vendemos a aeronave. E eu comecei a pilotar para ele, bem como a ser o intérprete dele em reuniões comerciais e palestras que o mesmo ministrava em diversos lugares, até em faculdades, onde se apresentava como Médico Veterinário especializado em genética.

Foi quando comecei a ver as gritantes aberrações. Yani dizia para todos que era neto do primeiro presidente sul-africano, gastava quase 20 mil reais por mês na padaria da pequena cidade de Dourado-SP, e eu só acreditei nisso quando vi que qualquer um de sua casa simplesmente passava naquela padaria e pegava qualquer coisa que precisasse ou não precisasse, simplesmente pegava e anotava na caderneta.

Sobre os aviões, logo que comecei a trabalhar com ele, atuei como intérprete em uma conversa onde ele dizia para o interlocutor que tinha, nos EUA, dois MU-2B e um Merlin III. Ninguém erra os aviões que tem, quando tem três aviões. Essas porcarias custam centenas de milhares de dólares, e a sua compra é muito complicada. O fato de que ele me disse, no primeiro dia em que o conheci que tinha dois aviões de um tipo e um do segundo, para duas semanas depois inverter os aviões, seria o equivalente a uma mãe não saber se tem um filho e duas filhas, ou dois filhos e uma filha. Lógico, era mentira, ele só tinha o cessninha 1959, mesmo.

Sobre ele ser piloto, aí foi mais fácil ainda. No primeiro vôo em que estávamos só nós dois, quando cheguei à altitude de cruzeiro, desestabilizei o avião e entreguei na mão dele pois, como qualquer piloto, ele deveria estar muito ansioso para pilotar sua nova aeronave. Que nada, ele não sabia nem para que serviam os pedais...

A coisa não parou aí, pois EU presenciei o “Dr.” Yani matando centenas e centenas de pequenos avestruzes, simplesmente porque não tinha a menor idéia do que fazer com eles. Seus clientes, amargurados, simplesmente viam o investimento altíssimo ir literalmente água abaixo. Em um dos episódios mais fascinantes, vi quando o “Dr.” Yani explicava, com pose, gestos e palavras técnicas, como se devia fazer determinado tratamento. Pegou um avestruzinho de uma semana de idade, carregou uma seringa de injeção com sei-lá-o-quê, e aplicou. A conversa nem tinha acabado, e o bicho tava lá, caído, mortinho da silva.

Outro dia ele resolveu lavar o criatório. Tirou os pintinhos de avestruz para o quintal, misturou cloro com água, fez a limpeza, e no fim colocou os bichos de volta. Dessa vez morreram duzentos de uma só vez, intoxicados pelo cloro.

Ah, e quando a esposa dele, minha prima, ouvia ele dizendo que é veterinário? Ela ficava quase doida, quando algum cliente saía e ela se sentia mais à vontade, chegava a gritar, dizendo que essa história dele dizer que é veterinário iria acabar colocando ele na cadeia.

Cadeia? Não, aqui é Brasil, tudo se dá um jeitinho. Mas a primeira parte da história, que diz respeito aos avestruzes do Yani, termina aí. Deixei de trabalhar para ele ainda em 1999, comprei outro avião, e depois até cheguei a entrar de sócio com dois camaradas numa empresa ligada a avestruzes, e no final das contas, acho que os dois eram professores do Yani lá na escola de esperteza.

Mas no final de 2003 Yani me procurou novamente. Me mostrou um equipamento de imobilização eletrônica chamado “Rau”, e disse que pretendia fabricar no Brasil. Eu disse que o certo seria descobrir quem fabricava isso lá fora, e negociar uma franquia. Alguns dias depois, ele me trouxe um documento para que eu traduzisse, era a patente norte-americana do equipamento australiano chamado “Stockstill”. De posse da tradução, Yani depositou a patente com o nome Imoboi, e começou a fabricar uma cópia do “Rau”. Note que os dois equipamentos são muito diferentes, o “Rau” trabalha com uma sonda retal, e o Stockstill trabalha com eletrodos externos.

Yani começou a fabricar o Imoboi-cópia-de-Rau-com-patente-de-stockstill, e me convenceu a trabalhar com ele nas vendas. Devido ao golpe que os dois sócios me deram na firma de avestruzes, já haviam se completado dois anos sem que eu saísse na porte de casa, pois estava em plena crise de depressão profunda. Ele me colocou no carro, e na feira de gado em Uberaba vendi dezenas desses troços. Tinha gringo que comprava de 10 ou 15 de cada vez. Eu tomei o cuidado de fazer um contrato de representação, o que me garantia a tranquilidade de trabalhar sem estar diretamente ligado à fábrica de Yani.

Como eu tinha muito tempo livre, e como a imobilização eletrônica de animais era uma completa novidade para mim, comecei a estudar, na prodigiosa fonte de conhecimento humana que é a internet. Vi então que os equipamentos que serviram de suporte para o Imoboi já haviam sido banidos na Austrália, e terminantemente proibidos na Europa. Em pouco tempo foi possível saber o porquê: Rapidamente começaram a chegar telefonemas de clientes reclamando, principalmente de óbito de animais. Alguns animais, ao serem imobilizados, simplesmente caíam mortos. A resposta de Yani para esse tipo de reclamação era sempre a mesma: - “Não precisamos deste tipo de clientes, estamos vendendo muito, não me perturbe com esse tipo de problemas”. Mas cliente é coisa séria, alguma resposta deveria ser dada.

Quando em determinado dia eu estava em casa descansando, e fuçando a internet pesquisando sobre meu ator de comédias favorito, o norte-americano Jerry Lewis, vi que ele havia conseguido há não muito tempo se livrar das principais consequências da dôr crônica na coluna, utilizando um equipamento de pulsos eletrônicos conectado aos nervos de sua coluna vertebral. Fui fundo na pesquisa, entrei no site da uspto, e descobri que a anestesia e imobilização eletrônica podem ser providos pelo mesmo equipamento, mas jamais da forma como estava se fazendo. Os equipamentos que me referi até agora, todos eles, usavam pulsos de eletricidade em corrente contínua para providenciar um eletrochoque, cuja consequência era a imobilização, mas que devido ao fato de atuarem diretamente sobre o sistema nervoso parassimpático, levavam SEMPRE à uma diminuição das funções cárdio-vasculares, o que em alguns casos, leva ao óbito do animal. Na verdade, é apenas uma questão de sorte a sobrevivência do animal, basta o mesmo estar sob estresse um pouco mais de tempo, ou desidratado, e a morte é certa.

Tentei conversar com Yani a esse respeito, mas ele dizia que tinha “Ouro nas mãos”, e que eu falar mal do Imoboi era cuspir no prato em que comia. Logo a seguir Yani colocou um dos meus representantes contratatos para administrar sua fábrica, me deu o pé no traseiro, e eu saí sem receber nem um único centavo do meu trabalho. Sim, eu nunca recebi nem um único centavo pelo meu trabalho, nem pelo trabalho de nenhum dos mais de 20 representantes que, por força do contrato, nomeei em todo o país.

Mas eu tinha em minhas mãos todas as pesquisas que eu havia efetuado. Sabia que existia o caminho correto para se fazer anestesia eletrônica, pois apenas imaginava que o mesmo sistema que funcionava satisfatoriamente com humanos, deveria funcionar com outros mamíferos. Levei o calhamaço de minhas anotações para um colega brilhante, técnico em eletrônica que presta serviço para grandes empresas de televisão em toda a América Latina, já há alguns anos. Como conheço perfeitamente lógica, desenhei um fluxograma do que eu queria: Um gerador de pulsos em corrente ALTERNADA. O projeto, lógico, estava muito além de minha capacidade, porque não entendo nada de eletrônica, embora saiba que uma criança não morre eletrocutada quando coloca o dedo em uma tomada simplesmente devido à corrente alternada. Se a mesma potência fosse despejada em corrente contínua, a criança morreria. O que para mim era incrivelmente complicado, para meu amigo Edmilson Rocha foi um passeio no parque: Em uma semana ele me entregou um protótipo para testes.

Foi a vez de procurar outro amigo, um colega de faculdade que tem um sítio na mesma cidade onde, moro, em Araraquara-SP. Passamos o dia imobilizando diversos animais, alguns com um “Imoboi”, outros com o protótipo. Era visível a olho nú, mesmo para um leigo como eu, que o comportamento dos animais imobilizados com o protótipo era muito mais natural, sendo que mesmo os animais que chegavam irritados e agressivos ao brete, saíam calmos e relaxados. Não perdi tempo, e redigi uma patente em cima das descobertas, que resolvi chamar de “Paraboi”. Afinal, o equipamento foi criado para se usar com bois, e serve para imobilizar bois...

Meu cunhado, Julinho, resolveu parar tudo o que estava fazendo na vida, e começou a fabricar e comercializar o Paraboi. Começamos literalmente com uma mão na frente e outra atrás, pois os meus últimos meses de trabalho foram para um caloteiro, então eu não tinha capital para começar nada. Mas os primeiros clientes ficaram maravilhados com o produto, e deu para começar assim mesmo. Quem ficou impressionado com meu produto, também, foi o “Dr.” Yani. Tão impressionado que logo que ficou sabendo que eu estava fazendo algo diferente, deu um jeito de comprar um “Paraboi” através de terceira pessoa, e logo não estava mais fabricando Imoboi-cópia-de-Rau-com-patente-de-stockstill, mas sim Imoboi-cópia-de-Paraboi.

Mas e quanto à patente? Yani havia depositado sua farsa em fevereiro de 2004, enquanto eu havia depositado minhas descobertas em Agosto de 2004. Já em setembro eu tinha número de patente, e Yani ainda estava se batendo, tentando fazer passar a tradução do Stockstill no INPI.

Bom, eu, de posse do número de minha patente depositada, entrei com um processo contra a Imoboi, pedindo que ele parasse de copiar o meu produto. Ora, que voltasse a copiar as porcarias que ele estava copiando antes... Lembrando: Ele estava copiando o Rau, mas estava depositando a tradução da patente do Stockstill no INPI.

Consegui uma liminar, que jamais foi cumprida. Mas ao ser citado na ação, Yani teve em suas mãos a íntegra da minha patente. O que ele fez? Depositou uma correção da sua patente cópia de stockstill que não passava no exame preliminar, agora COPIANDO MINHA PATENTE LETRA POR LETRA!!!

Assim ele conseguiu, rapidamente, o que não havia conseguido: Seu depósito de patente passou no exame preliminar. Sim, qualquer um que copiar minhas patentes vai conseguir passar no exame preliminar, porque se trata de um exame da FORMA como a patente está sendo apresentada, não tem nada de haver com o conteúdo.

Só que o INPI, quando entrega a via da patente depositada para o requerente, não coloca cópia daquela patente que foi apresentada inicialmente: Coloca cópia da patente que foi depositada CORRETAMENTE, não importa que entre a primeira e a última tenham se feito dezenas de tentativas. De repente, Yani tinha um depósito de patente com uma página, a do protocolo, com data alguns meses anteriores à minha, e o texto da patente totalmente copiado do meu trabalho.

Bastou Yani juntar esse imbróglio no processo, e a juíza, sem conhecer os procedimentos do depósito de patente, aceitou que Yani teria uma patente válida com precedência sobre a minha. Incrível como é possível se cometer crimes com o endosso que uma autoridade, até mesmo quando essa autoridade não age nem com dolo ou culpa. Aqui no Brasil, é assim.

Não precisa nem dizer, perdi o processo. Apelei, vamos ver no que vai dar. Nesse meio tempo Yani está se virando como pode, respondendo a diversos crimes na Justiça Federal de Araraquara e de São Carlos, coisa tais como falsificação de matrícula de um avião roubado, falsidade ideológica por se autodenominar “Médico Veterinário” (ouvi falar que ele comprou um diploma, será que vai ter a cara de pau de apresentar mais essa prá própria polícia federal?), e lógico, crimes contra o fisco, não um, mas vários. Depenar o Arnaldo é fácil, mas depenar o governo é mais complicado.

O filho do Yani, Warren Kruger, me disse uma vez que o pai dele não pode entrar em seu país natal, a África do Sul, porque é condenado criminalmente lá, e se entrar, vai preso imediatamente. A mesma coisa com os EUA, onde ele morou 15 anos. Mas isso eu apenas ouvi, não tenho como ter certeza. Sei apenas que se ele também for condenado à prisão no Brasil (condenações leves, por lesão corporal, ele já cumpriu) vai fugir novamente, e recomeçar sua vida de golpes em um quarto país, provavelmente com uma quarta esposa, e com mais não sei quantos filhos. Esse é o Yani.

Mas a pirataria não parou aí. Não bastasse o “Dr.” Yani ter aplicado o golpe do imobilizador em metade do Brasil, e quebrado sua própria firma “Imoboi” (está no site novinho dele, dizendo que vai despejar sua porcaria no mercado por R$ 300,00), ele usou de sua lábia e conseguiu fazer contrato com duas empresas boas e absolutamente idôneas, que lógico, já devem ter cortado as gargantas dos executivos que fizeram negócio com Yani. Porque ninguém faz negócio com Yani para não perder MUUITO dinheiro, e disso eu sou testemunha presencial.

Ah, e como está o Paraboi? Vai bem, apanhando para pagar as contas e os impostos, com todas suas obrigações em dia à duras penas, porque não é fácil combater pirataria quando se faz tudo certinho.

Temos a felicidade de deter um record, e se pesquisar, acho que deve ser um record internacional: Nunca houve um único óbito sequer devido ao uso do Paraboi. Se eu não posso ter nenhuma outra recompensa, esta por enquanto me basta.

Planos e sonhos? Utilizar a tecnologia do Paraboi para diminuir o sofrimento de pacientes terminais de câncer ou de dôr crônica, em substituição a anestésicos químicos. Mas é só um sonho, porque eu, ao contrário de Yani Kruger, sei que não sou médico.