domingo, 27 de junho de 2010

SÓ SEI QUE NADA SEI

Só sei que nada sei – Sócrates, citado por Platão em sua Apologia de Sócrates, primeiro discurso, 21d. Me lembro de ter tido vontade de colocar esta resposta, por ocasião de minha primeira prova, quando cursei Filosofia na faculdade. Estaria então sob risco de ser tão incompreendido como Sócrates o foi, na sua época. De qualquer forma, esta intrigante frase se encontra em pauta, principalmente porque vivemos uma revolução científica, enquanto nossa sociedade ainda é predominantemente religiosa. Explico: O estudo da frase nos remete a uma aparente contradição entre fé e ciência.

Hoje temos este incidente filosófico explicado por várias vertentes, e uma que julguei bastante plausível encontra-se no seguinte vídeo:




Eu gosto da hipótese de que Sócrates estivesse sendo humilde em relação ao próprio conhecimento, mas não acato mansamente a tese de que a solução do dilema pudesse ser obtida com uma análise tão superficial, nem que os objetivos da frase de Sócrates fossem tão diretos e evidentes. Ao contrário, prefiro colocar a humildade do filósofo como uma postura necessária e fundamental na busca pelo conhecimento, bem como para a aplicação deste conhecimento no cotidiano. Gostaria de explicar melhor meu ponto de vista, com base em algumas experiências vividas.

Um “sabe-tudo”

Há coisa de 20 anos atrás, eu estava trabalhando com meu pai, que era construtor civil, e fiquei encarregado de uma reforma, a ser efetuada dentro da casa de uma família de classe média alta em São Paulo, família esta que, apesar de minha insistente argumentação, preferiu continuar residindo no imóvel DURANTE a reforma, o que dificultou muitíssimo o serviço, além de implicar em horas adicionais de limpeza meticulosa ao final de cada dia de trabalho, o que não aconteceria da mesma forma se se tratasse de um ambiente dedicado exclusivamente ao trabalho da reforma.

Bom, à parte o serviço ter sido gratificante, como o são quase todos os labores manuais, um episódio que me marcou bastante foi, ao final da reforma, uma conversa que tive com o dono da casa. Ele, que tinha o nome de um semi-deus grego, às tantas me disse que sabia todas as coisas. Como não pude esconder meu espanto, ele enfatizou que sabia tudo sobre tudo. Sem pensar, disparei que apenas um idiota acharia que sabe tudo sobre todas as coisas. Só depois de bastante tempo compreendi que o fundamento para sua “certeza” estaria em uma base espiritual, pois ele confiava que seus mestres de sabedoria lhe traziam todo o conhecimento sobre todas as coisas.

Eu estudo desde o dia em que pela primeira vez me foi dito que eu deveria estudar, ou seja, desde a aurora de minha consciência como ser humano. Nunca achei que tivesse exaurido o conhecimento em alguma matéria, nem jamais imaginei que tivesse ao menos conseguido esbarrar nisso. E olha que quando eu comecei a devorar enciclopédias, acreditava que deveríamos saber um pouco sobre tudo, e tudo sobre alguma coisa. Talvez seja por este motivo que tenha dado esta pronta e impensada resposta ao meu interlocutor.

Saber leigo

Deixo de lado aquelas pessoas que habitualmente impregnam sua mente com preconceitos que lhe vedam a absorção do conhecimento em sua forma bruta, pois estas jamais aprenderão nada.

Mas das que se predispõe ao aprendizado, eu posso afirmar com convicção que APRENDER é algo que deve ser continuamente exercitado, e esta aventura é movida a dois combustíveis: Amor pelo conhecimento, e humildade face à sua fonte de informações. Visto por outro ponto de vista, estamos continuamente aprendendo a aprender, ou seja, aperfeiçoando e desenvolvendo técnicas de aprendizagem.

O verdadeiro sábio jamais deve se aproximar de outra pessoa na certeza absoluta de que só seu interlocutor tem algo a aprender: A melhor postura é a de quem, conquanto indo para ensinar, esteja sempre predisposto a aprender, mesmo que esteja frente ao mais humilde lavrador, porque a experiência de vidas diferentes geram diferentes saberes. Então, se para um engenheiro é importante saber detalhes técnicos sobre determinada coisa, o engenheiro não pode, por conhecer as regras aprendidas, desprezar as informações prestadas pelo aldeão: Pelo contrário, deve acolher as novas informações, e tratá-las tentando convertê-las para o seu modo técnico de pensar, para então, afinal obter mais segurança na execução de seu trabalho. O engenheiro pode, por exemplo, decidir erguer sua construção em outro terreno mais elevado, a partir da informação de que ocasionalmente o local previamente escolhido é inundado pela força de águas de um rio não perene.

O técnico, conquanto deva dominar a matéria sobre a qual tem domínio, jamais deve desprezar o conhecimento leigo. É fato que o conhecimento leigo, muitas vezes conflita com aquilo que se convencionou sobre determinada matéria, e isto é facilmente detectável no universo do Direito, onde as pessoas simples trazem suas certezas advindas de sua noção de Direito Natural ou dos costumes, querendo invocar direitos que podem ser absolutamente incoerentes com as normas vigentes. Ocorrem até mesmo conflitos culturais, com exemplos presentes em nossos dias, onde as pessoas têm grande imersão na cultura jurídica alienígena, por conta de filmes e seriados estrangeiros, e acabam agindo e pleiteando direitos não de acordo com as regras de nosso país, mas pelas regras que aprendem nos materiais culturais com que tiveram contato.

Por outro lado, é importante saber que o direito natural é fonte de Direito, e em alguns casos, o profissional deve buscar conhecer a fundo os costumes e tradições de um povo, especialmente de uma micro região, a fim de primeiramente tratar as ocorrências dando o devido peso para o fator cultural, para depois, em um segundo momento, promover os ajustes necessários, de forma que desvios mais graves entre os costumes e o direito formal sejam ajustados, com o conhecimento correto sendo então disseminado para as pessoas do povo.

Então o conhecimento leigo deve ser captado e tratado pelo técnico por dois motivos: Primeiramente para que este conhecimento se adicione ao seu arsenal; depois, para que se detecte desvios nos costumes, que possam causar prejuízos à população leiga, devendo-se então se promover o que for necessário para que haja a disseminação da informação correta. E isto se aplica a qualquer área do conhecimento humano.

Percepção do mundo

O conhecimento, tanto o formal como o leigo, sempre se origina de nossa percepção do mundo. Esta percepção pode ser com ou sem preconceitos, com ou sem pré-conhecimentos que se aproximem da matéria, e, de qualquer forma, a nossa primeira aproximação com este novo conhecimento sempre será influenciada por diversos fatores mediatos e imediatos, tais como, por exemplo, o nosso conjunto de conhecimento geral que antecede o contato com o novo conhecimento, além de fatores do momento em que tomamos contato com o novo conhecimento: Horário, cansaço, fome, estado de humor, bem como condições específicas para a observação do novo conhecimento, tal como o estágio da tecnologia empregada para a observação do fenômeno, e ou a disponibilidade desta tecnologia para o observador.

Assim, pode se perceber que o conhecimento sobre determinada coisa jamais será igual para duas pessoas que a aprendem no mesmo lugar e hora, e será tanto mais diferente quando aprendido por pessoas de diferentes locais, épocas e culturas. Daí que nenhum conhecimento é igual, nem absoluto. Mas o conhecimento humano cresce com todos estes fatores, porque a observação de um fenômeno em diferentes condições e épocas, por diferentes observadores, pode e deve se especializar, a cada vez que as diferentes percepções relativas a este mesmo conhecimento são seguidamente registradas, por um maior número de observadores.

Quando estas observações são condizentes e coerentes umas com as outras, mesmo que não o sejam prima facie, ocorre um enriquecimento da ciência humana no que diz respeito a este conhecimento. A recíproca por vezes também é verdadeira, isto especialmente quando nascem novas perspectivas que tornam ultrapassados os conhecimentos já sedimentados, trazendo nova luz, ocasião em que temos um progresso no conhecimento científico mediante o abandono de posições antes adotadas, como aconteceu no momento em que a ciência se afastou da magia e da metafísica.

Certeza

Por vezes, no entanto, a falta de humildade do cientista veda-lhe os olhos, especialmente quando um leigo lhe diz algo que é contrário ao conhecimento formal, quando então se torna mais fácil dizer “isto não existe”, ou “isto não é assim”. A depender do pedantismo, um pobre incauto pode até mesmo ser vítima de um olhar de profundo desprezo, vindo do “sábio”.

Devido à minha curiosidade premente, uma vez em que eu estava numa feira regional aqui na cidade de Araraquara, fui direto para o stand da Faculdade de Física de uma das maiores e mais respeitadas universidades do país. Como desde jovem sempre tive grande interesse em fenômenos envolvendo a queima de hidrogênio e quebra da molécula da água, e tinha visto recentemente um programa do Discovery Channel onde o locutor explicava que em incêndios de alta temperatura não se deveria jogar água, porque neste caso se estaria jogando combustível, ousei perguntar para o professor titular da cátedra a este respeito, ou seja, em que condições a molécula da água poderia se quebrar e já ocorrer a queima do hidrogênio, e, especialmente, se existiria esta condição em alguma alta temperatura, de vez que eu, como piloto, sabia que abaixo de -40ºC ocorria outro fenômeno curioso da água, denominado de sublimação espontânea. A minha ideia, naquele momento, seria de que assim como existiam fenômenos físicos pouco explicados na escala inferior de temperatura da água, também poderiam existir fenômenos pouco estudados no topo da escala de temperatura da água. Bom, não preciso nem dizer a vergonha que passei por ter feito a pergunta.

O grande professor, do alto de seu conhecimento, tinha certeza da inexistência de tal fenômeno. Simples, como ele nunca havia ouvido falar, como ele nunca leu nada a respeito, e como nenhum professor lhe levou esta informação a uma sala de aula, era óbvio que tal simplesmente não existia.

Anos mais tarde, quando depositei minha patente versando sobre termólise de água (não fui eu quem inventou o termo), o escritório internacional de patentes na Áustria detectou que já existiam pelo menos seis outras invenções versando sobre o mesmo tema.

Replicação

O cientista não pode se ater a certezas. A certeza é o suicídio da ciência. Conhecendo as verdadeiras origens de nosso conhecimento formal, ninguém jamais se prestaria a estes arroubos de arrogância. Para qualquer conhecimento, sempre houve alguém que dele se aproximou pela primeira vez, e que iniciou a descrição do fenômeno segundo a sua carga de conhecimentos, mas também de convicções pessoais. Por outro lado, estamos apenas começando nossa aventura humana de observação, somos bebês face à multitude de fenômenos que nos circundam, muitos dos quais já tentamos explicar, enquanto talvez ainda nem sequer nos tenhamos dado conta da maioria deles.

As verdades absolutas pertencem ao universo da religião, e não precisam serem explicadas, porque são sustentadas pela fé. Ainda assim, nenhuma experiência religiosa é completa se não houver um feed-back, ou seja, se o crente ora com fé e nunca é atendido, ou se as “respostas” todas podem ser consistentemente explicadas à luz do normal e do cotidiano, então não houve fé, o que ocorreu foi apenas um fenômeno psicológico do crente, que se satisfez em acreditar em algo maior do que si mesmo.

Então a fé ficaria para o universo do inexplicável, e a ciência para tudo o que for passível de comprovação empírica? Nem sempre. Eu posso ter uma experiência religiosa rica e efetiva, com minhas orações mais improváveis sendo atendidas de forma maravilhosa, mas nem por isso ocorrerá, para terceiros, uma comprovação empírica. A comprovação empírica, por seu lado, pode ser falaciosa, ou, no mínimo, tendenciosa, para falar o menos. Então a fé pode ter comprovação empírica, ainda que tal ocorra exclusivamente para o crente, ao passo que a comprovação empírica que não seguir rígida metodologia científica (o que inclui a divulgação para outros pesquisadores da mesma área), não é confiável. Apenas o que acontece é que a experiência espiritual não tem o condão de ser replicada segundo técnicas de metodologia científica.

Crença verdadeira justificada

Ao contrário do que acontece nas questões de fé religiosa, o cientista jamais pode partir de uma certeza antecedente, pois sua pesquisa estará totalmente comprometida.

Apenas para citar um exemplo, trago recentes publicações mencionadas nas Lições de Escola Sabatina da IASD, no original em inglês:

“The Adventist Health Study, conducted by Loma Linda University, compared Seventh-day Adventist church members in the United States who share similar demographics and lifestyles except for two different categories of diet. When those who eat a lacto-ovo-vegetarian diet (plant food plus eggs and milk) were compared to omnivores who included red and white meats in their diet, the vegetarians had less heart disease, less types of cancers, less hypertension, less diabetes, less dementia, and less osteoporosis --- leading to an increased life expectancy” (Adult Sabbath School Lesson, April-May-June 2010, page 97).

Entre os adventistas do sétimo dia que conheço e tenho ligação pessoal, alguns são vegetarianos. Destes, conheço diversos de meu círculo mais próximo que morreram prematuramente, devido a câncer em alguma parte do sistema digestivo. Não conheço, dentro deste meu círculo, óbitos de adventistas não vegetarianos por câncer no trato digestivo.

Então, qual o motivo de existir um estudo que aponta exatamente o CONTRÁRIO do que é possível observar aqui, agora? Bom, existe a possibilidade de as diferenças regionais entre o local da pesquisa (EUA) e o meu microuniverso de adventistas gerar esta aberração.

Mas vejo uma outra hipótese para o desvio, ou seja, como adventista e pesquisador, entendo que o erro na pesquisa pode estar em uma predisposição do pesquisador na obtenção de determinado resultado – a pesquisa pode ter sido ensejada com a finalidade de dar validade científica a uma questão de fé. Explico.

Existe uma profetiza da Igreja Adventista do Sétimo Dia, e ninguém se batiza na IASD sem que confesse publicamente acreditar em seus escritos. Esta senhora, falecida há séculos, a partir da leitura de estudos de sua época passou a pregar o que denominou como “Reforma de Saúde”, dizendo que o que escrevia advinha de visões do céu, ou algo que o valha. Assim, a Loma Linda University, que é uma instituição adventista, tem que fazer pesquisas que corroborem o ponto de vista pregado por Ellen G. White, pois isto dá sustentação científica para a própria existência da IASD.

Observe o perigo: Para se afirmar a veracidade científica das obras de Ellen G. White, os pesquisadores partiram da crença absoluta nas palavras da sua profetiza. Então, a pesquisa é apenas destinada a se COMPROVAR a verdade que se pré-conhece. Isto não é ciência.

Para evitar anomalias como as acima, torna-se necessário que o cientista jamais inicie o seu trabalho a partir de uma certeza: Ciência parte de hipóteses. E o resultado final, por mais criterioso que tenha sido o cientista, não é uma VERDADE: é apenas o resultado de sua pesquisa, que segundo os seus critérios, apontam em determinada direção.

Ciência serve para se validar hipóteses, e, muitas vezes, o cientista precisa humildemente admitir que a hipótese inicial encontrava-se equivocada. Isto é maravilhoso, porque independentemente do resultado da pesquisa, o próximo pesquisador que enfrentar o assunto poderá observar toda a documentação anterior, para então:

1.aceitar ou não os resultados obtidos;
2.propor outro “approach” para o problema;
3.efetuar nova pesquisa, com outra metodologia;
4.ou simplesmente adotar os resultados da pesquisa, e dar o próximo passo na evolução daquela área da ciência.

Se os resultados de várias pesquisas convergem para o mesmo resultado, e se a comunidade científica se assenta nos resultados obtidos para a partir daí tecer todas as teorias sobre a matéria, os resultados daquela pesquisa primal ainda assim não se transmutam em verdade, mas em “crença verdadeira justificada”.

Então, esta crença verdadeira justificada nada mais é do que a convergência de nossos conhecimentos sobre a matéria em questão, importando na posição academicamente aceita como correta.

Se fosse verdade, seria imutável. Em se tratando de uma crença, está sujeita a ser modificada, a partir da evolução do ponto de vista sobre a matéria sobre a qual versa.

Então, a célebre frase de Sócrates, perpetuada por Platão, está na raiz da ciência humana, e nunca foi tão essencial ao desenvolvimento do pensamento humano. Poderia ser reescrita, sem o mesmo charme e mistério, com as seguintes palavras:

Busco conhecimento, porque estou insatisfeito com o conhecimento que tenho, e porque não imputo ao meu conhecimento atual a qualidade de verdade absoluta.